sexta-feira, 25 de julho de 2008

O emigrante e os imigrantes

Tiago Santos


Combinamos de ir ao teatro uma amiga e eu, e, por isso, embarcávamos em um carro vermelho. “Espera, esse banco tem um segredo”, foi que disse nosso carona quando a colega tentou levantar o assento. Como quem sabe os mistérios que envolvem a caranga, entrou para dar jeito no banco e voltou com um punhado de papeizinhos miúdos e coloridos, quase mágica. “Vocês querem estes convites aqui? Ofereci para meus amigos, mas nenhum se interessou”. Havia pelo menos três convites pra cada uma das noites da semana de espetáculos do Cena5, o festival de teatro que acontecia na cidade. Dividi mais ou menos a metade com minha companheira. “Pronto. Podem entrar”, ele disse para nós. “Você primeiro, quero ficar na frente”, eu disse para ela. Ela riu e resmungou qualquer coisa que não ouvi, mas entrou.

Sentei no banco da frente, com medo de pisar em cima de qualquer coisa que brilhava no chão, no tapete de borracha. Parecia a capa de um CD, mas era só um pacote plástico. “Desculpa a bagunça”, ele disse. “Capaz!”, eu disse, por educação. Borges de Garuva, fomentador de projetos do Ielusc, contou brevemente sua história dirigindo em direção ao Teatro Juarez Machado. Antes de Joinville, morava em Curitiba onde aprendeu a trabalhar somente durante a noite. Na vida boêmia foi comunicador sem ser formado em comunicação, isto fez questão de deixar bastante claro. Veio para cá fazer propaganda para a fundição Tupy, chamando pessoas de outros lugares para trabalhar na próspera e industrial cidade catarinense. Ele dizia isso como quem constata coincidências. “Eu fiz parte disso. Aqueles outdoors horríveis. Era pra isso que eles me contrataram: chamar mão-de-obra barata pra se foder nesta cidade”. Ele não disse isso, mas foi como se tivesse dito.

Pareceu-me que tinha tido uma vida mais produtiva fora de Joinville. Como se ele fosse feliz outrora, mas não agora. Em certa altura, errou a entrada e deu uma voltinha estúpida em um cruzamento movimentado. “Estou indo pra casa”, ele disse, rindo. Eu ri também. E foi assim, chegando no pátio do Centreventos.

Nos enrolamos um pouco e entramos no suntuoso Juarez Machado. No saguão vários grupinhos de duas ou três pessoas conversavam qualquer coisa, e bem no meio, em uma espécie de sofá circular, estava sentado um rapaz de boné tocando violão. Um homem mais velho o acompanhava, no lado, de olhos fechados. Passei por eles, abanei um cumprimento com a cabeça enquanto ouvia acordes que me soavam desafinados. Um sorriso simpático saía da boca do violeiro. Entramos, ela e eu, no teatro, cumprimentei uns poucos conhecidos e a convenci a sentar mais para o canto, na frente. Aceitou e fomos. Falava demais, e tive medo que mesmo depois que começasse a peça, continuasse falando. Comentei: “Depois que o sinal tocar três vezes seguidas, a peça começa”. Enfim, se aquietou.

“Migrantes, uma peça bem joinvilense”, ouviria depois dizer de bocas múltiplas. Uma história de pessoas cujo destino apontou-lhes um rio sujo e a promessa de emprego. Paranaenses, paulistas, mineiros e gaúchos, todos eles enredos da peça, todos eles empregados da vida. “Começa hoje mesmo!” dizia o velho Ruy, ao recém-chegado José Manoel de nome tão comprido quanto seu antebraço, personagens da peça, e a história dos imigrantes se desenrolava com um humor leve. Para Borges, leve demais. Foi o que ele nos disse ainda no carro. Ele já tinha visto a peça. Concordei com ele. Porém, havia momentos interessantes. Em certa altura, a casa de um dos personagens literalmente caía, e não se sabia se tínhamos que rir ou permanecer quietos frente a uma situação tão difícil. A atuação dos atores quase fez com a platéia subisse ao palco e participasse da peça, como que hipnotizada pela nostalgia da lembrança. Tudo era Joinville. Os sotaques caricaturizados na fala dos artistas, a bicicleta que rodava de um lado pro outro... O choro de três semanas da paulista que não se acostumava com a antipatia do povo da cidade. A criança que imaginava: “Onde será que os joinvilenses escondem seus livros?”, e a descoberta, depois de crescida: “Ah, não escondem livros. Eles simplesmente não os lêem”. Tudo era Joinville.

Durante a peça, os atores deram fala a alguns do público para que contassem suas próprias histórias. Perguntaram a minha parceira, ela disse: “É igualzinho, até hoje meu pai reclama da padaria”. Na peça uma personagem reclamava da padaria. Outra entrevistada disse: “Eu discordo de tudo que foi dito sobre os joinvilenses até agora. Morei um tempo em Curitiba e lá o povo é muito mais fechado. Adoro meus amigos daqui”. E foi assim, até a hora em que resolveram, enfim, continuar a peça.

A peça acabou. Várias perguntas foram formuladas, - “Qual sua mensagem para as crianças?”, era uma delas – algumas respondidas, outras não, murmurinho. Meus ouvidos atentos. Estava presente na platéia o paulista Antônio do Vale, crítico, ator, dramaturgo, escritor e militante de longa data – um destes que fugiu da DOPS durante a ditadura e tudo o mais. “O teatro de Joinville precisa transcender suas fronteiras. Fazer teatro não somente para os próprios joinvilenses, mas para os vizinhos, para gente de fora”, criticou. “A peça é boa, mas falta trabalhar com alguns elementos para que seja mais universal. Por exemplo, as piadas sobre palavrinhas que se usam na região, foi alguma coisa que não entendi direito, então não ri, não achei graça. Isso pode ser problemático, até certo ponto”.

Saímos do teatro. Já estávamos sob céu escuro quando e percebi que a noite não tinha acabado, ainda. Havia algo a ser feito, ainda. Perguntas, perguntas e perguntas, ainda. “Vai para o debate, vai!”, ela disse. Eu fui. Precisava perguntar alguma coisa, ou qualquer coisa, talvez. Inquirir algo a alguém, qualquer algo e qualquer alguém. Cheguei na porta dos fundos, passando o saguão onde se juntou gente uma hora antes e o violeiro tocava. Dobrei uma esquina e me deparei com um salão vazio de janelas retas e teto baixo. O círculo de pessoas, que não ocupava um quinto do lugar, estava pronto e conversava entre si, no canto. Entrei junto com uma moça careca, alta e encorpada que me perguntou as horas. “Quinze pras dez”, eu disse. “Obrigada. Estamos atrasados”, ela disse. Sentamos fora do círculo. “Você faz jornalismo?” ela disse, sussurrando. Balancei a cabeça afirmativamente. “Em que ano estás?”, ela disse. “Terceiro”, eu disse. E olhamos pra frente.

O debate era, na verdade, as constatações e observações feitas por Do Vale, o crítico, a respeito da peça. A maioria das pessoas presentes somente permaneceu em silêncio. Algumas deram um depoimento emocionado, o que arrancou alguns sorrisinhos de compaixão de Silvestre Ferreira, diretor da peça e coordenador do Dionísios Teatro, grupo que a apresentou. “Tem muita gente com vontade de fazer teatro aqui em Joiville. O que falta são diretores capacitados para orientar esse pessoal”, ele disse. Do Vale retrucou: “Isso acontece no país inteiro. De uma maneira geral, faltam diretores capacitados e sobram pessoas com vontade”. A minha pergunta, direcionada a Silvestre, era sobre o momento, na peça, em que um dos atores catava uma câmera de vídeo do chão e enquadrava os outros, que contavam histórias de imigrantes joinvilenses. Por que misturar teatro e vídeo? “Nós fizemos isso em outras peças também. Dá um efeito interessante”, ele disse. “Se desta cena vocês não se voltassem ao público e interagissem com ele, este efeito não teria o menor cabimento”, retrucou Do Vale, que dizia sempre coisas sensatas, e quando ele falava todos permaneciam em um silêncio respeitoso, diferente do convencional.

Saí do debate. Crianças berravam no corredor, querendo ir embora. Cumprimentei as mães e o guarda, que me pareceu singularmente simpático. Nos fundos do Centreventos, peguei a Orestes Guimarães em direção ao centro. Apesar da hora, encontrei duas senhoras passeando com seus cães com pêlos bem podados. Uma tinha um Poodle e a outra segurava um Chow-Chow pela coleira. Olhei para o alto, os edifícios – “Condomínio Residencial Juarez Machado”, o mesmo nome do teatro onde estava sentado há uma hora atrás. Alguns adolescentes bebiam cerveja, sentados na beira da calçada. Não tinha encontrado nenhum mendigo naquela noite. “Migrantes...”, me veio à cabeça, “Quanto concreto, sólido e seguro. Quantos porquês silenciam a esta hora da noite. Quanta gente...”. Estava frio, queria chegar em casa logo.

3 comentários:

Michels disse...

Uauu! Que texto bonito!

Anônimo disse...

Farah disse:

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Anônimo disse...

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